terça-feira, 6 de novembro de 2012

UM OLHAR DE PERTO DA REVOLUÇÃO SÍRIA

Fazendo uma pausa para a reflexão, posto uma tradução minha para um relato escrito por um anarquista sírio sobre a situação em seu país. É interessante refletir como nem sempre as condições materiais são a única razão para os processos históricos. O texto foi encontrado no site http://www.anarkismo.net .


Um olhar de perto da revolução síria

Um anarquista entre jihadistas

Por um companheiro sírio

O que poderia, em alguma medida, explicar minha situação quando eu estava no interior dos “territórios liberados” da Síria, é que esses são territórios controlados pelo exército livre, as forças armadas da oposição Síria. Mas isso ainda não seria inteiramente verdadeiro. É verdade que nem todos os militantes do exército livre são jihadistas devotos, embora a maioria deles pensem, ou digam, que o que eles estão praticando é “Jihad”. A verdade é que há muita gente comum, mesmo ladrões, etc. entre eles, como em qualquer conflito armado. 

Minha primeira e última impressão quanto à situação corrente na Síria é que não há mais uma revolução população acontecendo lá; O que está tomando lugar no país é uma revolução armada que pode degenerar simplesmente para um conflito civil. O povo sírio, que mostrou coragem e determinação sem precedentes, nos primeiros meses da revolução, para derrotar o regime de Assad, apesar de toda sua brutalidade, está, agora, de fato exausto. Dezenove longos meses de feroz repressão e, recentemente, fome, escassez e contínuos bombardeios do exército do regime, está enfraquecendo seu espírito. Cinicamente, o beneficiário de tudo isso não foi o regime, mas a oposição, especialmente os islâmicos. Dependentes de sua relações internacionais, especialmente com os ricos governos despóticos do golfo pérsico, a oposição agora pode alimentar e apoiar a população faminta nas áreas controladas por suas forças. Sem esse apoio uma grave situação humanitária poderia estar tomando lugar.
Mas esse apoio não é fornecido de graça, nem pelos governantes do golfo, nem pelos líderes oposicionistas. Eles são, como qualquer outra força autoritária, solicitando a submissão e a obediência das massas. Isso, de fato, poderia apenas significar apenas a morte real da revolução síria como um corajoso ato popular das massas sírias. Sim, eu ajudei alguns jihadistas a sobreviver e outros a voltar ao combate, mas minha intenção real foi ajudar as massas às quais pertenço, primeiramente como médico, e, depois, como anarquista. 

Para dizer a verdade, não acho que nosso problema seja com o islã propriamente. O islã pode ser também igualitário, ou mesmo anárquico. Na história do islã houve estudiosos que reclamaram por uma sociedade muçulmana livre e sem estado, até por um universo livre sem qualquer tipo de autoridade. O problema com o que está acontecendo agora na Síria não é só o difícil e sangrento processo de superação de uma ditadura cruel, mas pode mesmo ser ainda pior: a substituição disto por outra ditadura, que pode ser pior e mais sangrenta. No começo da revolução, um pequeno número de pessoas, principalmente islâmicos devotos, reclamaram a representação das massas revoltosas e apontaram a eles mesmos como os verdadeiros revolucionários, a verdadeira representatividade da revolução. Isto foi contradito pela tendência predominante das massas e intelectuais revolucionários. Opusemos essa reivindicação autoritária e até falsa, mas fomos, e ainda somos, muito poucos para fazer alguma diferença real.
Essas pessoas defenderam que o que estava acontecendo era uma guerra religiosa, não uma mera revolução de massas oprimidas contra seus opressores. Usaram muito agressivamente o fato de que o opressor era de outra seita do islã, diferente da seita da maioria do povo que ele está explorando, uma seita que foi frequentemente julgada pelos sacerdotes sunitas no passado por ser contra o ensino do verdadeiro islã, o que é até pior do que não ser muçulmano. Ficamos chocados pelo fato de que a maioria dos xiitas, a seita do atual ditador, que são mais pobres e mais marginalizados do que a maioria sunita, deram apoio ao regime; e que participaram na brutal supressão das massas revoltas. Daí vem a “evidência” da “atual guerra religiosa” acontecendo entre sunitas e xiitas. Para elas, essas pessoas podem realmente estar reivindicando um real sunismo; elas são muçulmanas e tão sectárias que ninguém pode desafiá-las. De fato, eles construíam sua autoridade moral e espiritual antes do material.
Então, vem o apoio material dos governantes do golfo. Agora o potencial para qualquer luta popular real está caindo rapidamente; Síria é governada agora pelas armas; e só aqueles que as tem podem dizer algo sobre seu presente e futuro. E essa é a verdade não apenas para o regime de Assad e sua oposição islâmica. Em todo Oriente Médio as grandes esperanças estão desaparecendo rapidamente – Na Tunísia, Egito e onde quer que seja. Os islâmicos parecem ganhar todos os benefícios da corajosa luta das massas. E podem facilmente iniciar o processo de estabelecimento de suas leis fanáticas, com pouca oposição das massas. Posso sentir exatamente como Emma Goldman sentiu em 1922 quando ela rompeu com os bolcheviques e finalmente se desiludiu com suas regras. De fato, ninguém em todo mundo árabe e muçulmano parece mais próximo dos bolcheviques atualmente do que os islâmicos. Por muito tempo foram brutalmente reprimidos por ditaduras locais, usados para aterrorizar as massas no ocidente; e por causa disso podem ter parecido como se fossem a mais decisiva parte da oposição a essas ditaduras. Ao mesmo tempo, eles têm a mesma eficiente máquina de propaganda que os bolcheviques já tiveram. São tão agressivos e autoritários, quanto os bolcheviques foram durante os decisivos dias da Revolução de Outubro.  Então, parece lógico que os povos árabes optassem por tentar colocá-los no poder, ou aceitar sua subida até ele. Mesmo ansiar, como os operários e camponeses russos fizeram uma vez, que eles possam realmente criar um tipo diferente e melhor de sociedade, também parece lógico. No caso de Emma Goldman, ela despertou muito cedo dessa ilusão; para as massas, isso leva mais tempo. Ainda, Emma pensava, corretamente, em minha opinião: as massas estava muito certas para se levantar e tentar mudar sua realidade miserável, o grande “erro”, se isso pode ser descrito como um erro, foi feito pelas forças autoritárias que buscavam raptar a revolução. Nós apoiamos a revolução, não seus falsos “líderes”.

Construindo a alternativa libertária: propaganda e organização anarquista

A outra questão que penso ser importante para nós, anarquistas e massas árabes, é como construir a alternativa libertária: isto é, como iniciar uma propaganda libertária ou anarquista efetiva e como construir organizações libertárias. Para dizer a verdade, nunca tentei convencer ninguém a ser anarquista antes. Optei apenas pelo libre diálogo entre “iguais” com todo mundo. Nunca reivindiquei que sei tudo ou que qualquer anarquista ou qualquer outro ser humano mereça ser o “guia” ou o “líder” de outros, que ninguém merece estar na mesma posição que o Papa, imãs muçulmanos ou o secretário geral de qualquer partido leninista ou stalinista. Sempre pensei que tentar afetar outros é outro meio de praticar autoridade. Mas agora, vejo isso com outra perspectiva: isso é para fazer o anarquismo “disponível” ou conhecido para todos aqueles que querem lutar contra qualquer autoridade opressora de cuja repressão eles estão sofrendo; sejam eles operários, desempregados, estudantes, feministas, minorias étnicas, religiosas ou juventude, etc. isso é sobre tentar construir um exemplo ou amostra de uma nova vida livre no seio de uma organização libertária livre: não apenas como uma manifestação viva de sua presença potencial , mas também como um meio para alcançar essa sociedade.
Temos que fazer o anarquismo bem conhecido para todos os escravos e vítimas de todos os atuais sistemas supressivos e autoridades. EFETIVA PROPAGANDA ANARQUISTA é, penso, o primeiro objetivo de tais organizações. Em uma palavra, somos testemunhas da falência das “seculares“ tendências autoritárias (incluindo os nacionalistas e nacionalistas árabes, stalinistas e outras variedades de leninismo), e muito cedo a falência das religiões autoritárias. A alternativa futura deve ser, logicamente, libertária. Claro, o anarquismo não pode ser implantado artificalmente – deve ser um produto “natural” das lutas das massas locais. Mas ainda é necessário cuidado para ser devidamente realçado. Será, supostamente, o papel de nossa propaganda. Não haverá “centro” em nossa organização, nem burocracia, mas isso será esperado também de sua contraparte autoritária, até mesmo mais eficiente. Ainda Stalin ou Bonaparte não estão no poder, as massas sírias têm a oportunidade de obter um melhor resultado do que o da Revolução Russa. É verdade que isso tem se tornado mais difícil a cada minuto, mas a própria revolução já é um milagre, e nessa terra o oprimido pode cria seus milagres vez por vez. Dessa vez também, nós, anarquistas sírios, estamos botando todas nossas fichas e todos nossos esforços com as massas. Não pode haver outro caminho, ou não mereceríamos ser chamados de libertários.

Tradução: Rafael Martins da Costa, de Porto Alegre

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